quarta-feira, 16 de abril de 2008

O homem que não traía

Olha, vai indo pra lá e me espera naquela posição.

De quatro, de costas, de bruço, com a cara voltada para a parede, com a cara enfiada na poltroninha da sala moquifada de um flat moquifado. A cara encostada no geladinho da última chuveirada. De cara pro chão.

Assim ele a queria: sem olhar em seus olhos, sem beijar sua boca, sem sentir sua alma. Assim não era traição, ele pensava.

Ele era um homem sério, apaixonado pela mulher, apaixonado pelo filho que estava aprendendo a dizer papai, apaixonado pela instituição família, apaixonado pelo apartamento novo, apaixonado pela casa na praia com cadeirinha de balanço de frente para o mar, apaixonado pela profissão, apaixonado pelo salário, apaixonado pelo respeito que tinha por ser um homem de família e bem-sucedido, apaixonado demais pra ter alguma nova paixão.

Olha, vai indo pra lá e me espera naquela posição. A posição ela podia escolher, desde que fosse qualquer uma em que ele não visse seu rosto.

Ela aceitava e tanta submissão a excitava. A hipocrisia disfarçada de todos os relacionamentos era a maior causa de sua angústia indescritível. Ela tinha um nojo da dualidade de intenções dos seres humanos que ora amam, ora usam, e preferia a clareza da sacanagem e a certeza do vazio. Ela escutava o som da porta, o cheiro dele invadia o quarto e ela desabrochava como uma flor ao se alimentar do Sol, mesmo com tanta escuridão. Uma pressão sem a menor pretensão de carinho a lançava para frente, ele a prendia pelos cabelos.

Aquilo durava horas até que tanto suor trouxesse a obviedade do banho. Ele tomava primeiro e se despedia dela, sem olhar pra trás: tchau minha querida.

De volta para a rua cheia de casais que passeavam de mãos dadas, ela andava sem saber se sorria ou se chorava. Sentia-se violentada pela inexistência do amor e absurdamente feliz pelo mistério da outra mulher que a invadia vez ou outra. Lembrava de Chico Buarque e se sentia reconfortada pelas baixarias e putarias transformadas em poesia. Era um romance sujo, mas era um romance.

Olha, vai indo pra lá e me espera naquela posição. Era um vício e talvez você não entendesse nada olhando para ela. Uma moça bonita, uma moça tão paparicada, uma moça tão menina. Ela tinha homens lhe oferecendo carinho em bandejas de ouro.

Mas talvez você entendesse a moça se mergulhasse fundo nas estranhezas do espírito e lembrasse de um dia em que se excitou com algo doloroso: um amor proibido qualquer, uma falta de telefonema qualquer, um fechar de rosto e um olhar sombrio no lugar de semblantes rosados de amor.

Quando o amor é falso, a mágoa é tão grande que você o trai amando justamente a falta dele.

Ou nem precisa tanto, talvez você entendesse a moça se algo tão preenchedor rasgasse seus orgulhos, suas certezas, suas dignidades.

Ele entrava nela e calava qualquer opinião formada, qualquer preconceito, qualquer direito de ser melhor que alguém. Era um alívio: ela era humana e suja como todos, era louca e estranha, era fracaŠ e o mundo se tornava menos feio e as pessoas mais passíveis de perdão.

Talvez você a entendesse se parasse de pensar um pouco e deixasse o corpo ir até onde o tormento manda. Você a entende bem.

Olha, vai indo pra lá e me espera naquela posição.

Estavam lá mais uma vez. Ela espremida, ele espremendo. O caldo sofrido de uma paixão. Um barulho estranho, a maçaneta manuseada impacientemente, alguém queria entrar ali. Era alguém que tinha errado de quarto e com um pigarreio envergonhado e velho se desculpava pelo erro.

Era tarde demais, com o susto ela tinha olhado para trás e eles haviam se olhado bem no fundo dos olhos por mais de dois segundos.

Você tá linda, esse corte de cabelo ficou ótimo em vocêŠ você tá bonita.

Ela o tentou beijar pela primeira vez e ele deixou. Tomaram banho juntos e ela fez uma brincadeira com as pintinhas das costas dele. Ele fez uma piada com a pintinha da virilha dela. Eles riram e ela o achou lindo. Ele a achou fantástica e inteligente. Ela beijou o pescoço dele e ele fez um carinho bem de leve nela . Ele a ajudou a sair da banheira e enrolou a toalha em seu corpo, dando um beijo em sua testa. Ela fez cara de menina, ele fez cara de proteção. Atravessaram a rua de mãos dadas, e nunca mais se viram.

Um comentário:

Edvaldo Reis disse...

Nossa, que lindo! Literatura também é dor.
Parabéns pelo blog.