quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Pequenas ternuras

"Quem acorda de madrugada e estremece no desgosto de si mesmo ao lembrar que há muitos anos feriu a quem amava;
... quem se detém no caminho para contemplar a flor silvestre;
quem se ri das próprias rugas ou de já não agüentar subir uma escada como antigamente;
...
quem procura numa cidade os traços da cidade que passou, quando o que é velho era frescor e novidade;
quem se deixa tocar pelo símbolo da porta fechada;
... quem se comove ao ver passar de cabeça branca aquele ou aquela, mestre ou mestra, que foi a fera do colégio;
...
quem jamais negligencia os ritos da amizade;
quem guarda, se lhe derem de presente, a caneta e o isqueiro que não mais funcionam;
...
quem coleciona pedras, garrafas e folhas ressequidas;
quem passa mais de quinze minutos a fazer mágicas para as crianças;
... quem procura decifrar no desenho da madeira o hieróglifo da existência;
quem não se envergonha da beleza do pôr-do-sol ou da perfeição de uma concha;
quem se desata em riso à visão de uma cascata;
quem não se fecha à flor que se abriu de manhã;
quem se impressiona com as águas nascentes, com os transatlânticos que passam, com os olhos dos animais ferozes;
... quem visita sozinho os lugares onde já foi feliz ou infeliz;
... quem sente pena da pessoa amada e não sabe explicar o motivo;

todos eles são presidiários da ternura e,
mesmo aparentemente livres como os outros,
andarão por toda parte acorrentados,

atados aos pequenos amores da grande armadilha terrestre."

Paulo Mendes Campos