sexta-feira, 18 de abril de 2008

PALAVRÕES TAMBÉM SÃO IMPORTANTES

Os palavrões não nasceram por acaso. São recursos extremamente válidos e criativos para prover nosso vocabulário de expressões que traduzem com a maior fidelidade nossos mais fortes e genuínos sentimentos. É o povo fazendo sua língua. Como o Latim Vulgar, será esse Português Vulgar que vingará plenamente um dia. Sem que isso signifique a "vulgarização" do idioma, mas apenas sua maior aproximação com a gente simples das ruas e dos escritórios, seus sentimentos, suas emoções, seu jeito, sua índole.
"Pra caralho", por exemplo. Qual expressão traduz melhor a idéia de muita quantidade do que "Pra caralho"? "Pra caralho" tende ao infinito, é quase uma expressão matemática. A Via-Láctea tem estrelas pra caralho, o Sol é quente pra caralho, o universo é antigo pra caralho, eu gosto de cerveja pra caralho, entende?
No gênero do "Pra caralho", mas, no caso, expressando a mais absoluta negação, está o famoso "Nem fodendo!". O "Não, não e não!", assim como o "Absolutamente Não" já soam sem nenhuma credibilidade. O "Nem fodendo" é irretorquível, e liquida o assunto. Te libera, com a consciência tranqüila, para outras atividades de maior interesse em sua vida. Aquele filho pentelho de 17 anos te atormenta pedindo o carro pra ir surfar no litoral? Não perca tempo nem paciência. Solte logo um definitivo Pedrinho presta atenção, filho querido, NEM FODENDO!". O impertinente se manca na hora e vai pro Shopping se encontrar com a turma numa boa e você fecha os olhos e volta a curtir o CD do Caetano Veloso.
Por sua vez, o "porra nenhuma!" atendeu tão plenamente as situações onde nosso ego exigia não só a definição de uma negação, mas também o justo escárnio contra descarados blefes, que hoje é totalmente impossível imaginar que possamos viver sem ele em nosso cotidiano profissional. Como comentar a bravata daquele chefe idiota senão com um "é PhD porra nenhuma!", ou "ele redigiu aquele relatório sozinho porra nenhuma!". O "porra nenhuma", como vocês podem ver, nos provê sensações de incrível bem estar interior. É como se estivéssemos fazendo a tardia e justa denúncia pública de um canalha.
Há outros palavrões igualmente clássicos. Pense na sonoridade de um"Puta-que-pariu!", ou seu correlato Puta-que-o-pariu!", falados assim, cadenciadamente, sílaba por sílaba. Diante de uma notícia irritante qualquer um "puta-que-o-pariu!" dito assim te coloca outra vez em seu eixo. Seus neurônios têm o devido tempo e clima para se reorganizar e sacar a atitude que lhe permitirá dar um merecido troco ou o safar de maiores dores de cabeça.
E o que dizer de nosso famoso "vai tomar no cu!"? E sua maravilhosa e reforçadora derivação "vai tomar no meio do seu cu!". Você já imaginou o bem que alguém faz a si próprio e aos seus quando, passado o limite do suportável, se dirige ao canalha de seu interlocutor e solta: "Chega! Vai tomar no meio do seu cu!". Pronto, você retomou as rédeas de sua vida, sua auto-estima. Desabotoa a camisa e saia à rua, vento batendo na face, olhar firme, cabeça erguida, um delicioso sorriso de vitória e renovado amor-íntimo nos lábios.
E seria tremendamente injusto não registrar aqui a expressão de maior poder de definição do Português Vulgar: "Fodeu!".. E sua derivação mais avassaladora ainda: "Fodeu de vez!". Você conhece definição mais exata, pungente e arrasadora para uma situação que atingiu o grau máximo imaginável de ameaçadora complicação?Expressão, inclusive, que uma vez proferida insere seu autor em todo um providencial contexto interior de alerta e autodefesa. Algo assim como quando você está dirigindo bêbado, sem documentos do carro e sem carteira de habilitação e ouve uma sirene de polícia atrás de você mandando você parar: O que você fala? Fodeu de vez!".
Sem contar que o nível de stress de uma pessoa é inversamente proporcional à quantidade de "foda-se!" que ela fala. Existe algo mais libertário do que o conceito do "foda- se!"? O "foda-se!" aumenta minha auto-estima, me torna uma pessoa melhor. Reorganiza as coisas. Me liberta. “Năo quer sair comigo? Entăo foda-se!”. “Vai querer decidir essa merda sozinho(a) mesmo? Entăo foda-se!”. O direito ao “foda-se!” deveria estar assegurado na Constituiçăo Federal.Liberdade, igualdade, fraternidade e FODA-SE!
Luís Fernando Veríssimo

quarta-feira, 16 de abril de 2008

O homem que não traía

Olha, vai indo pra lá e me espera naquela posição.

De quatro, de costas, de bruço, com a cara voltada para a parede, com a cara enfiada na poltroninha da sala moquifada de um flat moquifado. A cara encostada no geladinho da última chuveirada. De cara pro chão.

Assim ele a queria: sem olhar em seus olhos, sem beijar sua boca, sem sentir sua alma. Assim não era traição, ele pensava.

Ele era um homem sério, apaixonado pela mulher, apaixonado pelo filho que estava aprendendo a dizer papai, apaixonado pela instituição família, apaixonado pelo apartamento novo, apaixonado pela casa na praia com cadeirinha de balanço de frente para o mar, apaixonado pela profissão, apaixonado pelo salário, apaixonado pelo respeito que tinha por ser um homem de família e bem-sucedido, apaixonado demais pra ter alguma nova paixão.

Olha, vai indo pra lá e me espera naquela posição. A posição ela podia escolher, desde que fosse qualquer uma em que ele não visse seu rosto.

Ela aceitava e tanta submissão a excitava. A hipocrisia disfarçada de todos os relacionamentos era a maior causa de sua angústia indescritível. Ela tinha um nojo da dualidade de intenções dos seres humanos que ora amam, ora usam, e preferia a clareza da sacanagem e a certeza do vazio. Ela escutava o som da porta, o cheiro dele invadia o quarto e ela desabrochava como uma flor ao se alimentar do Sol, mesmo com tanta escuridão. Uma pressão sem a menor pretensão de carinho a lançava para frente, ele a prendia pelos cabelos.

Aquilo durava horas até que tanto suor trouxesse a obviedade do banho. Ele tomava primeiro e se despedia dela, sem olhar pra trás: tchau minha querida.

De volta para a rua cheia de casais que passeavam de mãos dadas, ela andava sem saber se sorria ou se chorava. Sentia-se violentada pela inexistência do amor e absurdamente feliz pelo mistério da outra mulher que a invadia vez ou outra. Lembrava de Chico Buarque e se sentia reconfortada pelas baixarias e putarias transformadas em poesia. Era um romance sujo, mas era um romance.

Olha, vai indo pra lá e me espera naquela posição. Era um vício e talvez você não entendesse nada olhando para ela. Uma moça bonita, uma moça tão paparicada, uma moça tão menina. Ela tinha homens lhe oferecendo carinho em bandejas de ouro.

Mas talvez você entendesse a moça se mergulhasse fundo nas estranhezas do espírito e lembrasse de um dia em que se excitou com algo doloroso: um amor proibido qualquer, uma falta de telefonema qualquer, um fechar de rosto e um olhar sombrio no lugar de semblantes rosados de amor.

Quando o amor é falso, a mágoa é tão grande que você o trai amando justamente a falta dele.

Ou nem precisa tanto, talvez você entendesse a moça se algo tão preenchedor rasgasse seus orgulhos, suas certezas, suas dignidades.

Ele entrava nela e calava qualquer opinião formada, qualquer preconceito, qualquer direito de ser melhor que alguém. Era um alívio: ela era humana e suja como todos, era louca e estranha, era fracaŠ e o mundo se tornava menos feio e as pessoas mais passíveis de perdão.

Talvez você a entendesse se parasse de pensar um pouco e deixasse o corpo ir até onde o tormento manda. Você a entende bem.

Olha, vai indo pra lá e me espera naquela posição.

Estavam lá mais uma vez. Ela espremida, ele espremendo. O caldo sofrido de uma paixão. Um barulho estranho, a maçaneta manuseada impacientemente, alguém queria entrar ali. Era alguém que tinha errado de quarto e com um pigarreio envergonhado e velho se desculpava pelo erro.

Era tarde demais, com o susto ela tinha olhado para trás e eles haviam se olhado bem no fundo dos olhos por mais de dois segundos.

Você tá linda, esse corte de cabelo ficou ótimo em vocêŠ você tá bonita.

Ela o tentou beijar pela primeira vez e ele deixou. Tomaram banho juntos e ela fez uma brincadeira com as pintinhas das costas dele. Ele fez uma piada com a pintinha da virilha dela. Eles riram e ela o achou lindo. Ele a achou fantástica e inteligente. Ela beijou o pescoço dele e ele fez um carinho bem de leve nela . Ele a ajudou a sair da banheira e enrolou a toalha em seu corpo, dando um beijo em sua testa. Ela fez cara de menina, ele fez cara de proteção. Atravessaram a rua de mãos dadas, e nunca mais se viram.

terça-feira, 1 de abril de 2008

Todo mundo vai embora

Em algum momento, em vários deles ou definitivamente, as pessoas sempre vão embora. Talvez essa seja a pior coisa do mundo.
Ele vai embora, sempre, quando eu preciso de quinze minutos de silêncio complementar à minha entrega, odeio o desespero dele por banhos e a sua ansiedade curiosa pelo que vem depois. Que se dane o depois, eu sou agora, ou pelo menos era.
Ele vai embora, sempre, quando o parágrafo passa de três linhas, o pensamento dele ultrapassa meus olhos, o som se perde da minha boca para qualquer outro canto do mundo que não tenha seus ouvidos e ele olha fixamente para qualquer outra coisa que não seja a minha existência. Sempre a mesma cara de tédio e de busca pelo resto que não se repete ou não se prolonga.
Ele sempre vai embora quando eu queria que ele se perdesse um pouco, rasgasse a agenda, lançasse o celular no rio, desligasse todos os toques, luzes e sinais de que há todo o resto. Esquecesse do sono, do livro, da planta, das lembranças. Ele sempre vai embora do meu mundo quando eu só queria que ele descansasse um pouco de ser ele o tempo todo, mas ele tem muito medo de não ser ele, talvez porque ele não saiba o que ele é.
Ele sempre vai embora pra descobrir quem ele é, ou para lembrar que ele é o mesmo de sempre que não sabe quem é, ele sempre vai embora antes da gente ser alguma coisa juntos.
Vivo com essa sensação de abandono, de falta, de pouco, de metade. Mas nada disso é novidade. Antes dele, teve o outro, o outro que continua indo embora para sempre porque nunca foi embora pra sempre. Eu não sei deixar ninguém partir, eu não sei escolher, excluir, deletar. São as pessoas que resolvem me deixar, melhor assim, adoro não ser responsável por absolutamente nada, odeio o peso que uma despedida eterna causa em mim. Nada é eterno, não quero brincar de Deus.
O outro foi embora a primeira vez porque estava bêbado demais, foi embora a segunda porque ficou tarde, foi embora a terceira porque teve medo de ficar pra sempre, foi embora durante alguns longos anos porque todo o resto do mundo precisava dele e eu era apenas uma das demandas. Ele me chamou de demanda a última vez que foi embora pra sempre, mas pra sempre pode durar duas horas, dois anos ou duas encarnações. A gente sempre se despede lembrando da música do Chico que diz “o amor não tem pressa, ele sabe esperar em silêncio”.
Antes dele teve ainda um outro que sempre ia embora na espera de que existisse algo melhor do que eu, mas não ia definitivamente porque não é todo dia que aparece alguém melhor do que eu. Um dia apareceu, ela até que é bonita e tal, não parece tão confusa e intensa e talvez mediocridade seja tudo de que uma pessoa precise para ser feliz. Mas a última vez que ele foi embora, antes me deu um abraço de quem nunca saiu do mesmo lugar. O abraço e o seu olhar de quem nunca sabe direito porque vai embora ficaram pra sempre comigo.
Hoje meu novo amigo foi embora, não pra sempre, mas um segundo pode ser pra sempre se pensarmos grandiosamente, e ele me dá vontade de pensar grandiosamente. Fazia tempo que alguém não ficava tão calado enquanto eu apenas existo, fazia tempo que alguém não ficava tão perdido só porque me encontrou, fazia tempo que eu não me olhava no espelho e sorria, sabendo que sim, sim, sim, sou bonita ora bolas! Sou interessante! Da onde eu tinha tirado o contrário nos últimos meses?
Todo mundo chega na sua vida. Em algum momento, em vários deles ou definitivamente, as pessoas sempre chegam. Talvez essa seja a melhor coisa do mundo.
Como naquele texto que não lembro, daquela pessoa que não lembro, e sobre o qual você me contou de um jeito que eu nunca mais vou esquecer, no final a gente acaba mesmo numa esquina qualquer, lembrando de alguém que um dia chegou e depois foi embora, perplexo.